terça-feira, 27 de maio de 2008

Vitamina A


Médicos nem sempre são simpáticos, mas sempre há aqueles que nem médicos parecem, apesar da roupa branca, jaleco e linguagem + escrita praticamente iguais. Eu, por exemplo, nunca gostei deles. Aliás, ficar doente já era um transtorno dos grandes e ir até um consultório não era cogitado nem em pensamentos mais remotos.
Até que um dia, comecei a sentir dificuldade para enxergar. O tempo se passou, e quando já descoberta a miopia, me mudei e precisei achar outro oftalmologista. Marquei a primeira consulta armada de confiança e indiferença, assim como faziam quando eu chegava simpática e polida.
Fui, toda cheia de mim, já na defensiva, esperando pelo pior dos Doutores. Entrei na sala dele com menos visão ainda, pois havia recebido uma dose de colírio. Esse, que era pingado homeopática e rotineiramente de 15 em 15 minutos.

Me sentei em uma das cadeiras, esperando a entrada do carrasco. Era um consultório não muito grande, com um ar condicionado gelando hermeticamente o pequeno recinto, e em cada parede um instrumento diferente para os exames: uma cadeira grande, onde eu estava, a mesa dele, ao lado de duas poltronas gordas e felpudas, uma estante com diplomas, livros, folhetos e tudo mais a respeito de olhos, e alguns visualizadores estranhos que não cabem à minha escassa sabedoria médica, ou mecânica, saber os nomes.
Abriu-se e fechou-se a porta.
Boa tarde ! Como vai a senhorita ?, disse ele, abrindo um sorriso que fazia suas grandes bochechas vermelhas cerrarem seus olhos atrás dos óculos. Tinha uns olhos grandes e azuis, e um rosto redondo, assim como seu corpo. Era uma figura simpática, assim consegui distinguir forçando um pouco minha visão parcialmente embaçada.
Ah...mas como uma mocinha bonita dessa usa óculos todo o tempo ?, perguntou ele, ajustando as lentes frente aos meus olhos. Não sei, mas há vezes em que nem os óculos resolvem meu problema, disse eu, já intimidada. Ele fez mais alguns testes, e de tão simplório e doce, por pouco não fiquei esperando um pirulito ao final da consulta.
Com o pouco de nitidez que tinha, fiquei observando ele prescrever as receitas. Pensei em como seria a vida dele, se tinha filhos e se eles seriam todos redondinhos e com grandes olhos azuis como ele, se a esposa o esperava com pãezinhos dourados e redondos, que combinavam com suas bochechas...E por um momento, idealizei uma vida alegre, colorida, cálida e redonda. Ele parece ser feliz, comentei comigo. É, parece mesmo, comentei de volta.
Aqui está ! Seu grau ainda continua irrisório, não há necessidade para usar 24 horas por dia essa coisa, disse ele, me entregando a receita e com meus óculos cuidadosamente amparados na sua mão esquerda. Ele transmitia tanta felicidade que eu já deduzia: os problemas não resolvidos mesmo quando usando os óculos, eram do excesso deles. Foi a minha glória não precisar usar mais aquelas coisas todo o tempo e ter de franzir o nariz para acertá-lo no rosto, ou ver quem estivesse muito perto. Enfim, livre (em parte) ! Eu finalmente havia ficado satisfeita por ter tido uma consulta feliz. Por ter tido um encontro com um médico feliz.

Fiquei pensando depois em como ele se parecia com uma figura daquelas de livros infantis, ou com um desenho animado. Precisava dizer isso a alguém e na última consulta que tive, antes de me mudar novamente, disse ao próprio.
A reação não poderia ser melhor. Ele achou engraçado o modo como eu o via, e toda a delicadeza que procurei colocar junto com o comentário. Riu com gargalhadas, segurando a barriga com seus dedos roliços e seus óculos na outra mão. Eram gargalhadas redondas e felizes.
Fui para casa realizada, porém contida, afinal, teria que achar outro oftalmologista. Começaria outro martírio de sessões amargas e frias ?
A única esperança que tinha, e ainda tenho, é de que pelo menos um dos possíveis profissionais da saúde, assim como meu novo dentista, sejam redondos e felizes.

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